O martírio no século XXI
Fabiano Glaeser dos Santos[1]
No livro “Luz do mundo”, escrito a partir da entrevista concedida pelo Papa Bento XVI ao jornalista alemão Peter Seewald, o Romano Pontífice, refletindo sobre o papel do bispo de Roma e seu primado, diz que este é “primado do martírio” (p.25). Sendo a Roma antiga a capital do Império Romano e, por isso, capital das perseguições aos cristãos, a sede episcopal de Roma teve a tarefa particular de opor-se a essas perseguições e dar testemunho de Cristo. O Papa Ratzinger encerra esse ponto da entrevista com uma frase de grande profundidade:
“Ser papa não significa colocar-se como um soberano repleto de glória mas, antes, dar testemunho daquele que foi crucificado, e estar disposto a exercitar o próprio ministério também dessa maneira, em união com ele.” (p.26)
A palavra “martírio” vem do grego martyria, cujo significado é testemunho. Testemunhar é ver o fato e dizer sua opinião. É confirmar, com a palavra e com atitudes, a própria adesão a uma crença, no caso, Jesus Cristo. Na Igreja antiga, exercer o martírio era dar testemunho público de Jesus Cristo com o derramamento do sangue. Era seguir a Cristo na radicalidade. Nos períodos de perseguição, os cristãos eram colocados diante de uma escolha radical: ou negar a fé, ou perder a vida de forma trágica (queimado vivo ou devorado pelos leões). Os mártires não tinham dúvida: nenhum bem desta terra, nenhuma riqueza, nem mesmo a própria vida, valiam mais do que o tesouro escondido no campo que é o Reino de Deus (cf. Mt 13, 44). Eram consolados pelas palavras do próprio Jesus: “Quem acha a sua vida, a perderá, mas quem perde a sua vida por mim, a achará.” (Mt 10,39).
Posto isto, surge um ponto de interrogação: há lugar para o martírio hoje? Vale a pena morrer em nome de Jesus Cristo? É possível ser mártir em lugares nos quais não há perseguição?
Retomando a etimologia da palavra martírio – testemunho – e alargando o conceito de morte, que pode estar para além de simples interrupção da atividade biológica, nós temos que dizer que sim, mesmo em lugares de não-perseguição é possível viver o martírio. A adesão ao Evangelho, à pessoa de Jesus Cristo, nos coloca também diante de uma escolha radical: concordar com as estruturas e valores da sociedade, que muitas vezes são antievangélicas, e viver num estado de vem-estar, ou então optar pelo Evangelho de fato e de direito e, assim, opor-se a tudo que seja contrário ao Evangelho. Isso leva, na maioria das vezes, a um ostracismo social. Isso é martírio.
Os mártires não procuravam a morte, mas chegava o momento no qual deviam dar uma resposta clara e firme, e essa resposta levava à morte. Nós também não procuramos o desprezo da sociedade, mas, em dados momentos somos confrontados, e então temos que, ou dar testemunho da fé que professamos, ou corremos o risco de vestirmos a couraça da hipocrisia.
Os cristãos dos primeiros séculos não usavam roupas diferentes, nem tinham nenhum tipo de marca que os distinguiam dos outros cidadãos. Em suma, viviam no mundo como qualquer outra pessoa. Contudo, sabiam bem que valores aceitar e que valores recusar, e o ápice dessa escolha se deu nos momentos de perseguição, onde eram constrangidos a abjurar aquele que era o centro de suas vidas – Jesus Cristo. Então, deviam escolher: ou a própria vida, ou ficar com aquele que deu a vida por todos.
Do mesmo modo, nós, cristãos do século XXI, vivemos no mundo: trabalhamos e nos divertimos. Hoje não é crime ser cristão, não seremos mortos por usarmos um crucifixo ou uma camiseta com a imagem de Jesus ou de Maria. Entretanto, a perseguição se dá de maneira muito mais sutil e sorrateira, e, por isso, mais difícil de compreendê-la. Experimente, jovem, falar sobre castidade no seu ambiente de estudo ou trabalho. Defenda a virgindade no seu meio e veja o que acontece. Uma enxurrada rótulos cairá sobre você. Fale em honestidade, justiça social, defenda a vida desde a concepção até o seu fim natural, mesmo em condições extremas, como anencefalia ou estupro, e logo você será chamado conservador, retrógrado, medieval, atrasado,etc.,etc., etc. É ou não uma forma de perseguição? E se optarmos por, mesmo assim, defender o projeto de Jesus Cristo, seremos talvez condenados ao ostracismo social. Será o preço do nosso testemunho – do nosso martyria.
Para a juventude, a convivência em grupo é muito importante. Ser aceito pelo grupo é, para o jovem, fundamental, uma vez que este está construindo a sua personalidade, está descobrindo valores e procurando modelos. Assim, quando ele é desprezado pelo seu grupo, ele sofre, pois sente-se perdido. Isso faz com que o jovem, muitas vezes, absorva os valores do grupo, mesmo que ele se sinta dividido entre o que aprendeu dos pais em casa e o que lhe é apresentado pelo grupo – que algumas vezes divergem. Por isso, podemos dizer que,quando o jovem rompe com os valores do seu grupo de amigos para assumir os valores do Evangelho, isso é um verdadeiro martírio. E há muitos jovens hoje que são mártires, sem necessariamente derramarem seu sangue.
Importante também falar naqueles mártires que dão sua vida em prol da evangelização: catequistas, líderes comunitários, líderes de movimentos eclesiais, pais e mães de família que, dia-a-dia, suam para educar seus filhos e outros na fé, também enfrentando preconceitos e discriminações por parte daqueles – muitas vezes membros de sua própria família- que pensam ser essa dedicação ao Reino de Deus algo inútil e ultrapassado.
O século XXI necessita de mártires, no sentido etimológico da palavra, isto é, testemunhas. Pessoas coerentes entre o que professam e o que fazem, pessoas dispostas a defender o projeto do Reino de Deus, que coloquem Jesus Cristo como centro de suas vidas, e queiram fazer seu nome conhecido em todos os lugares. Pessoas que entendam que o cristianismo não é uma filosofia de vida, uma ideologia, um conjunto de idéias, mas o encontro com uma Pessoa: Jesus Cristo, e Jesus Cristo Ressuscitado; não um líder político, um agente social ou um revolucionário, mas o Filho de Deus, que se encarnou para fazer uma única revolução: a revolução da cruz e do amor.
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